terça-feira, 4 de maio de 2010

CILADAS DA CANÇÃO: USOS DA MÚSICA NA PRÁTICA EDUCATIVA


Por
Adalberto Paranhos
Universidade Federal de Uberlândia

RESUMO
Instigados pela necessidade de produzir novas pontes de comunicação com os alunos, parcelas expressivas
de profissionais ligados à educação passaram a refletir criticamente sobre suas práticas educativas. Mais
do que isso, como que tateando outros caminhos, vêm buscando incorporar ao arsenal de recursos
utilizados em classe outras linguagens para além das habituais. Nessas circunstâncias, a música
industrializada tem assumido crescente importância como meio pedagógico, insuflando novos ares nas
ações em sala de aula, para não falar aqui do desafio de trilhar distintas rotas de pesquisa, que resultou
numa produção bibliográfica que valoriza objetos de estudo tradicionalmente postos à margem pela
academia. O que se constata, no entanto, é que, embalados pelo desejo de experimentar diferentes sabores
dos saberes, existe uma acentuada tendência a concentrar o foco de análise quase exclusivamente – ou
pelo menos prioritariamente – nas letras das canções populares. Nesta comunicação procuro evidenciar
que, por maior que seja a relevância desse procedimento, ele por si só não é suficiente para dar conta da
complexidade do trabalho com música, mesmo quando não se alimente a pretensão de realizar um estudo
de natureza especificamente musicológica. Umas tantas implicações ou precauções metodológicas se
impõem quando os caminhos das práticas educativas e da pesquisa histórica se cruzam com os registros
sonoros. Quem se atém tão-somente à letra de uma composição pode perder de vista a relação de
complementaridade e/ou de oposição que ela entretém com outros elementos da obra musical na sua
realização histórica ou no seu fazer-se. Em primeiro lugar, a decifração da linguagem estritamente
musical, conectada à eventual filiação a gêneros musicais, à família instrumental que intervém na geração
de uma determinada sonoridade ou formatação timbrística, nada disso é estranho a quem se disponha a
percorrer todo o arco de opções ao lidar com música. Afinal, a música fala sem recorrer necessariamente a
palavras impressas e cantadas. Quantas vezes ela não se insinua como um discurso nu de palavras, mas
nem por isso menos eloqüente do que as formas de expressão verbal cristalizadas? Além do mais, as
palavras que aparentemente injetam sentido numa canção não deixam de passar, em muitas situações, por
um processo de dessignificação e/ou de ressignificação. Ocorre, com certa freqüência, o fenômeno que
Eni Orlandi chama de “migração de sentidos”. Daí que o sentido das letras das músicas seja cambiante,
mudando, por vezes, com o tempo, na dependência do contexto histórico-cultural e musical em que
ressurjam. Quando não permanecemos reféns da mera literalidade das letras das canções, aí sim estamos
aptos a perceber que o significante não se acha irremediavelmente comprometido com um significado
único, esvaziado de historicidade. Na perspectiva aqui adotada, uma canção está longe de reter um sentido
fixo, pré-fabricado ou predeterminado. Afinal, examinada dialeticamente, a produção de sentidos, como
parte de uma espécie de jogo polissêmico, abriga múltiplas leituras possíveis, por mais ambíguas e
contraditórias que sejam. O sim pode transmuitar-se em não, e vice-versa, ou em talvez. Por essa razão, é
necessário apontar ao menos mais uma das dificuldades que envolvem o trabalho com música. Uma
canção, a meu ver, não pode ser reduzida à peça fria da partitura ou de sua letra, quando mais não seja
porque interpretar implica também compor. Como já frisou Paul Zumthor, “o intérprete significa”. Assim,
quando alguém canta e/ou apresenta uma música sob essa ou aquela roupagem instrumental, ele atua, sob
determinado aspecto, não como simples intérprete, mas igualmente como compositor. O agente tende a
operar, em maior ou menor medida, no sentido de decompor e/ou recompor uma composição. E isso
acontece de modo consciente ou inconsciente, pouco importa no caso. Em síntese, para quem fugir dos
esquemas simplistas de apreensão do significado das canções, elas são como que um novelo de muitas
pontas. Ao circular socialmente, uma canção, em seu moto-perpétuo, pode ser inclusive ponto de
convergência de diversas tradições e contestações, espaço aberto para a pluralidade de sentidos e para a
incorporação de vários significados, até mesmo confliantes entre si. Por sinal, estas considerações – cuja
4830
base de apoio deriva da análise concreta que se pretende fazer de diferentes momentos históricos – estão
em linha de sintonia com os estudos que, dia após dia, têm ganho destaque no âmbito da História Cultural
ou da História Social da Cultura. Não foi Michel de Certeau quem já nos advertiu que o sentido de uma
obra não se define a partir de um depósito, de uma intenção ou de uma atividade autoral? Não foi ele que
criticou a “crença errônea na transparência significante dos enunciados, fora do processo de enunciação”?

para saber mais
http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/442AdalbertoParanhos.pdf