Por Alexandre Brautigam
“Acho que, acima de tudo, os sons desse mundo são tão belos em si mesmos que, se aprendessemos a ouvi-los adequadamente, o cinema não teria a menor necessidade de música.”
(Tarkovsky, no livro “Esculpindo o tempo”)
Uma provocação. Ou talvez um alento, um dedo apontado para estilos musicais criados já há décadas atrás, mas que permanecem, para a grande maioria das pessoas, ainda hoje, desconhecidos – como se tem tornado freqüente, quando se fala da música contemporânea.
O mais engraçado é que foi cultura adquirida no glorioso e inflacionado século XX, a insistência estanque em se ouvir e aprender nos conservatórios e salas de concerto a música do passado – no nosso caso, tal passado se banha nos grandes mestres do romantismo, classicismo e barroco, como Beethoven, Mozart e Bach e na grande “Escola Imperial do Sistema Tonal”, para o “bem de nossos ouvidos”. O sistema tonal foi, por muito tempo, o absoluto soberano sistema de arrumação das notas caretas da música ocidental, a partir de formatos que acariciassem o ouvido da platéia (ou ao menos que, após dar uma “pancadinha”, logo depois “faziam carinho”. Mas, principalmente depois de Wagner (final do século XIX), compositores (do século passado) de linhas as mais diversas passaram a caminhar espremidos na pequena faixa reservada aos acadêmicos e às poucas outras pessoas que flutuam ao redor de sistemas que não compartilham dessa política do “morde e assopra”, e que por isso se tornam mais “difíceis” para se ouvir. Citando, para contextualizar: Schoenberg, Stravinsky, Messiaen, Ligeti, Schaeffer, muito do Villa-Lobos e vários outros.
Às vezes outras artes ajudam a trazer de volta à tona parte do que se desenvolveu nessa música do século XX. O teatro e as instalações acabam, de vez em quando, remexendo nesse saco de opções sonoras variadas e dali tiram suas amostras. O mesmo faz, também, o cinema. Podemos perceber isso se nos descolarmos de Hollywood (muitas vezes, também da Globo e dos Cinemarks da vida) em direção aos cineastas que não cultuam, fervorosamente, a ditadura da palavra no processo de montagem de sua obra.
Por quê? Pois assim, a fala não determina mais o ritmo do filme. Não existe aí uma necessidade de cortar a cena (e o som) logo após um diálogo, pra não “cansar” o espectador. Então, a partir daí, temos tempo. E, como sugere Tarkovsky, é possível ter calma para esculpir o tempo. Observamos que no seu processo, o som é matéria-prima tão concreta quanto os fotogramas que passeiam, ordenados, pela moviola (máquina padrão usada nas montagens de filmes até a invenção da edição digital).
Mas afinal, para que lado aquele dedo lá de cima apontava, já que muitos estilos musicais foram criados ou desenvolvidos nas últimas décadas?
1948. Pierre Schaeffer cria, na França, a música concreta. Uma música que aumenta as possibilidades de composição, abrindo o leque dos elementos sonoros utilizáveis para tal. Até hoje, muitas pessoas têm dificuldade para aceitar a música concreta. Isso porque ela não se limita aos instrumentos convencionais, e aceita de bom grado sons considerados tradicionalmente como não-musicais. Tosse, sons de trens e máquinas em geral são alguns dos exemplos desses sons usados por Schaeffer, os quais muitos deles entram na definição do que seriam sons complexos. Tais sons seriam todos aqueles cuja altura nós não conseguimos definir com precisão, ou seja, atribuir-lhes uma “nota musical”, quantificá-los dentro da tessitura (malha de possibilidades que compreende desde os sons mais graves aos mais agudos).
Mas para compor sua música, Schaeffer não se limitava a capturar e reproduzir tais sons. A graça vem ao manipulá-los, num grande exercício de montagem e percepção. Eis aí o grande pulo do gato…
Outra fato é que a música concreta aceitava também os sons de instrumentos convencionais (chamados por Pierre Schaeffer de sons tônicos – ou seja, sons com altura [ “nota” ] definida), devidamente capturados pelos microfones os quais se dispunham então. O avanço técnico desenvolvido no século XX neste campo foi bem considerável…
Mais um diferencial: como a música concreta se desenvolveu muito a partir de “corte e costura” ou “corte e colagem”, de um trabalho quase que de moviola, podemos perceber já aí nas próprias palavras uma relação bem próxima ao cinema.
Também ao aceitar os sons complexos como elemento musical, a composição se aproxima de um pensamento cinematográfico, pois no cinema normalmente existem músicas (incidentais ou não -compostas de uma maneira geral, em cima dos sons tônicos) e os sons que não fazem parte dessas músicas (estes, normalmente, sons complexos).
A partir da música concreta, fazendo sua relação com a Sétima Arte (o Cinema), podemos lançar um olhar sobre seus elementos sonoro-musicais a partir de um outro viés. Quando o compositor / sound designer tem apurado este olhar (ou esta escuta), pode trabalhar numa linha muito mais tênue a relação entre sons tônicos (as ‘notas’) e sons complexos, fazendo com que a trilha sonora do filme seja permeada por sons complexos, por exemplo. Deixa-se criar, assim, um fino traço entre o que seria música e o que seria apenas um som ocasional, incidental ou não, como o som de um carro que passa ou de uma bola que quica… Estes novos sons podem ser escutados como música, e essa nova situação faz com que as possibilidades se desmembrem com tal riqueza de detalhes e interpretação que a brincadeira começa a ficar cada vez mais gostosa, tanto no fazer quanto no ouvir / analisar. Para tal, basta apertar o play na máquina e “girar a chave” na nossa maneira de ouvir …
Será essa discussão que começaremos a dissecar, de maneira incessante e inesgotável, a partir dos próximos artigos. Até lá!
“Pero el cine constituye un medio para surrealizar el sonido […] y abre una vía a las materializaciones sonoras de lo fantástico, que bebe directamente de la realidad.” (Epstein)
créditos: cafetinaeletroacustica.com
Parabéns pelo artigo. Muito Bom!
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