quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

MÚSICA, LUZ, ATORES - mais uma das coisas dispostas em cena


MEYERHOLD E A MATERIALIDADE DO EVENTO CÊNICO1
Marcus Mota
Universidade de Brasília – UnB
Meyerhold, teatralidade, teoria.

Um dos aspectos recorrentes nos escritos de Meyerhold é a reação a uma determinada concepção do teatro como reprodução da realidade, no caso o teatro naturalista do estilo dos Meiningen2. Essa concepção, algumas vezes acatada pelo Teatro de Arte de Moscou, baseia-se na tradição de ‘grande espetáculo’, que oferecia ao público pagante um desfile de excessos – multidões, canhões, maquinário cênico, épocas passadas com todos
apetrechos e quinquilharias3.

A solução para o impasse provocado pela forte correlação entre o verismo da reconstrução histórica e o seu hipnotismo ilusionista foi incrementada por meio do contato com a obra de Tchecov, e, posteriormente, com a dos simbolistas. Por exemplo, durante a preparação de A morte de Tingalis houve um entrechoque entre os cenotécnicos e a direção artística4: os esboços dos planos das cenas elaborados pela direção confrontavam-se com as maquetes que reproduziam interiores e exteriores das cenas.

A ruptura com hábitos e
técnicas da cenografia naturalistas passava pela simplificação do maquinário. Ao invés da pesada e complicada materialização de um espaço em tamanho natural com todos os seus volumes e detalhes, temos, como na montagem da peça Colega Crampton, de Hauptmann, manchas grandes e vivas, a própria pintura como cenário, coisa e quadro. Essa imagem não acabada, mas suficiente, retrabalhada com a iluminação e alguns objetos de cena, essa tela imensa limitada por uma grande janela ao alto assentava as bases do convencionalismo cênico de Meyerhold.

Substituindo a continuidade normalizadora de uma cenografia
totalizante por pinceladas, Meyerhold deslocava o eixo de atenção do mundo fora da cena para aquilo que se colocava em cena. Mais propriamente: o que se exibia, o que se mostrava à platéia eram as operações de seleção e reconfiguração de materiais, eram os materiais redefinidos – o processo criativo mesmo de apropriação e transformação dos materiais. Em um primeiro momento, tal operação fundamental da dramaturgia da encenação - remoção das trucagens e maquetes – parecia assinalar um esvaziamento do palco, sua desmaterialização. Porém, com menos coisas, materializavam-se melhor aquilo que é a realidade do evento teatral – atos e objetos que se apresentam a partir da percepção de sua distinta elaboração.

Um segundo obstáculo para a experiência de teatralidade desenvolvida por Meyerhold no Teatro Estúdio residia na formação dos atores. Daí entrava em cena a questão da dramaturgia de Tchecov. Os complexos agentes da dramaturgia de atmosfera seriam casos especiais, desafios ao naturalismo. Ao se enfrentar o repertório de Tchecov, o diretor e o ator estariam em um comum e perigoso empreendimento cujo sucesso ou fracasso interpretam-se em relação a confirmar ou não uma pré-estrutura da
“verossimilhança cênica”.

O enfrentamento do repertório de Tchecov é ambivalente: de um
lado aponta para o limite de uma concepção que busca a plenitude do espetáculo na plenitude da caracterização; de outro, parece coroar a expansão totalizante de uma concepção que se torna pressuposto transhistórico e multi-aplicável no emergente campo das artes cênicas “A arte de qualquer ator se apassiva quando se converte em essencial”- este lema esclarece o reposicionamente de Meyerhold diante do trabalho com os atores.

É solicitado ao ator não a execução de atos
previamente marcados, mas sim que se insira na atividade de construção do espetáculo, que ele mesmo, com seu corpo, seja mais uma das coisas dispostas em cena. Espacializando-se, sendo a própria coisa observada, o ator materializa-se e materializa o espetáculo. Disponibilizando-se como algo a ser percebido a partir da configuração de seus atos, o ator não está preocupado em ajustar o que faz a uma pretensa universalidade verossímil.

O que explica o que ele realiza são os atos que efetiva. O domínio de gestos, atitudes, olhares, silêncio escolhidos, conectados e experimentados durante o processo criativo é exibido e explorado durante as apresentações. A descoberta do modo como manipular sua presença é performada. Cada montagem vai exigir do ator essas descobertas, essa atividade criadora.
Quanto mais o ator se defrontar com repertórios e tradições diversificadas mais vai flexibilizar e aprimorar sua atividade interpretativa.

Da
impossibilidade de representar de uma só vez a realidade em sua plenitude fica a necessidade de cumulativamente desenvolver habilidades a partir de processos criativos específicos. Ou seja, Meyerhold rompe com o sistema ilusionista que o precedia e que ele utilizara em sua carreira como ator e diretor iniciante. Essa ruptura pode ser bem compreendida no ato de trazer para o primeiro plano, para a frente do palco atividades que se encontram nos bastidores, ocultas no maquinário do teatro.

O sistema ilusionista, com seu ideal de propor para a
audiência a contemplação de um mundo aparentemente fechado em si mesmo, sustentava-se em uma estranha dialética entre aquilo que se mostra e aquilo que se oculta. Meyerhold, a partir do estudo das limitações desse
sistema, demonstra como esse dualismo é redutor e artificial, pois se fundamenta em exclusões, em restrição das possibilidades de todas as cadeias do processo de composição, realização e recepção de eventos multidimensionais.

O paradoxo da operação meyerholdiana reside no fato de se
evidenciar o evento teatral como algo construído, de se aproximar o processo criativo da performance, de se valer das referências à própria organização do espetáculo como material para as interações recepcionais. No sistema ilusionista havia o espetáculo estava condicionado a uma trama
clara, a uma narrativa que organiza a sucessão dos acontecimentos representados. Essa subordinação dos atos interpretativos a uma instância prévia desencadeava uma hierarquia, uma tendência à homogeneização da diversidade de atividades e referências. Daí o dualismo, o jogo do que se mostra e do que se esconde.

Quando as máquinas são os homens, como na biomecânica, as posições se alteram, os significados estáveis entram em ruína. O palco se vê tomado por figuras que se revelam em sua totalidade. Elas se sobrecarregam de funções e habilidades (corpos em movimento são cenografia), o que colabora para que a audiência não simplesmente siga o acabamento dos eventos exibidos no cumprimento da lógica verossímil proposta. O chamado ‘teatro teatral’ de Meyerhold postula o não apagamento ou ocultação dos atos e dos suportes do acontecimento cênico. Aquilo que se mostra exibe referências para a sua compreensão e fruição, e não apenas a atualização do esquema de sua legibilidade. E é para este momento, para o espaço de emergência da performance e dos vínculos entre performers e audiência que a ruptura Meyerhold se dirige.

A partir de Meyerhold, a materialidade da cena não é um ato
subsidiário, uma encarnação das idéias, um detalhamento de alguns aspectos pontuais da narrativa. A materialidade da cena é espetáculo mesmo. Nessa tautologia refuta-se o autocentramento do sistema ilusionista do naturalismo teatral e abre-se o caminho para a autonomização das artes do espetáculo,
explorada no século XX por programas estéticos os mais diversos.

1 Este texto é uma versão reduzida de livro em elaboração sobre parâmetros de elaboração de Teorias em Artes Cênicas, desenvolvido no Laboratório de Dramaturgia (LADI) , que dirijo na UnB, a partir do Programa de Pós-Graduação em Arte na mesma universidade.
2 Companhia teatral liderada pelo duque germânico Georg II Saxe de Meiningen (1826-1914) que excursionou pela Europa entre 1874 e 1890 – em 1885 e 1890 passou pela Rússia -, destacando-se por um tratamento pomposo do passado histórico. Para tanto, desenvolveu a presença e o movimento de multidões no palco, como em cenas de batalha e coroação, aprimorou os detalhes de objetos de cena, cenários e figurinos, além de trabalhar com plataformas e efeitos sonoros, o que coloca o Duque de Meiningen como um modelo da figura moderna no encenador, além de contemporâneo da idéia wagneriana de arte total . V. KOLLER 1984, WILLEMS 1970, GRUBE 1963. Para desdobramentos do método e do teatro de Meiningen, v. HANSON 1983. 3 ROUBINE 1998:121 “Essa foi a época dos grandes quadros, sem os quais nenhuma ópera, de Meyerbeer a Verdi, seria considerada completa. (exemplo disso: o triunfo de Aída, 1971). Foi também a época dos grandes balés com enredo, nos quais as cenas feéricas alternavam-se com as cenas de corte (exemplos: A bela adormecida,1889; O lago dos cisnes; ambos de Tchaikovski). 4 A peça não chegou a ser apresentada. O trabalho foi desenvolvido no Teatro Estúdio, aberto e encerrado
por Stanislavski, em 1905.

GRUBE, M. The Story of the Meininger. University of Florida,
1963.(Edição alemã de 1926).
HANSON,K.T. Georg II, The Duke of Saxe-Meiningen:Reexamination.
Tese de doutorado, Brigham Young University, 1983.
KOLLER,A.M. The Theater Duke. Georg II of Saxe-Meiningen
and the German Stage. Stanford University Press, 1984.
MEYERHOLD,V. Écrits sur le Théâtre. La Cité-L’Age d’Homme.
1973,t I; 1975 t.II; 1983 t.III. Trad. Pref. notas B.Picon-Vallin.
ROUBINE,J-J. A linguagem da encenação teatral. Zahar, 1998.
WILLEMS,V. A. W Henry Irving and The Meininger. Tese de
doutorado. The University of Wisconsin, 1970.

Nenhum comentário:

Postar um comentário